Bonecas Reborn, Liberdade Subjetiva e Saúde Mental: Uma Reflexão Psicoterapêutica Sobre Gênero, Afetos e Estigmas
Vivemos em uma sociedade que avança, ao mesmo tempo em que mantém arraigadas muitas estruturas arcaicas. Em meio à explosão de novas formas de subjetividade, ainda lidamos com normas culturais rígidas sobre o que é aceitável sentir, desejar e fazer — especialmente quando se trata das mulheres. Um exemplo recente é o julgamento público em torno das mulheres adultas que colecionam e cuidam de bonecas reborn, figuras hiper-realistas que simulam bebês, utilizadas em muitos casos como forma de expressão emocional, suporte psicológico e até recurso terapêutico.
A partir da crítica presente na fala: “Antes de julgar mulheres adultas que querem brincar de boneca, vamos falar dos homens adultos que jogam bola, vídeogame e compram bonecos [...] NINGUÉM critica isso. Estranho, né?”, este artigo propõe uma análise psicoterapêutica e argumentativa sobre o significado subjetivo dessas práticas, os preconceitos de gênero que emergem nesse cenário e os impactos do olhar social na saúde mental de mulheres.
Brinquedos, Adultos e Subjetividade: Por que isso incomoda?
A primeira provocação que surge é: por que ver uma mulher adulta com uma boneca incomoda tanto? Por que essa imagem provoca ironia, piadas e críticas, enquanto práticas igualmente lúdicas ou escapistas por parte dos homens — como jogos, coleções de action figures ou o futebol semanal — são tratadas como normais, até virtuosas?
A resposta está nos papéis sociais de gênero. As mulheres historicamente foram associadas ao cuidado dos outros, à maternidade, à função emocional. Quando esse cuidado se volta para si mesmas, mesmo que simbolicamente, ele é considerado fútil ou patológico. Já os homens, socialmente autorizados a manter hobbies que envolvam competição, desempenho ou controle, não são vistos como infantis por isso.
Essa assimetria revela o machismo estrutural e o controle simbólico do comportamento feminino. Mulheres que não se enquadram nos padrões estéticos, sexuais ou produtivos impostos são frequentemente patologizadas — seja por brincar, por não desejar filhos, por envelhecer, ou simplesmente por desejar algo que não atenda à lógica utilitarista do patriarcado.
Bonecas Reborn: Brinquedo, Terapia ou Transgressão?
As bonecas reborn não são meros brinquedos. São objetos carregados de simbolismo psíquico profundo. Em diversos contextos, elas cumprem funções como:
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Elaboração do luto materno (após perda gestacional ou neonatal).
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Canalização do afeto para mulheres que não puderam ou não quiseram ter filhos.
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Apoio emocional para ansiedade, depressão ou transtornos de apego.
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Terapia ocupacional e estimulação cognitiva para idosos com Alzheimer.
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Exploração estética e criativa, como hobby artístico.
Sob o olhar terapêutico, essa prática não é “infantilização”, mas um mecanismo de autorregulação emocional. Assim como alguém pode encontrar segurança em rituais diários, no cuidado com plantas ou na escrita, o cuidado com a boneca simboliza a possibilidade de reconexão consigo mesma, com aspectos internos da infância, da maternidade ou até do vazio existencial.
O Julgamento e a Vergonha: Como o Olhar do Outro Adoece?
A vergonha é um dos afetos mais poderosos na constituição do sofrimento psíquico. A vergonha social imposta às mulheres por gostarem de algo “inadequado” — como bonecas — é uma forma de controle emocional que restringe a autonomia subjetiva.
Na psicoterapia, vemos frequentemente o impacto do olhar julgador da sociedade sobre os desejos individuais: mulheres que não conseguem se permitir hobbies “bobos”, que têm medo de parecerem “fracas” ou “ridículas”, que vivem em função do que o outro aprova. Essa autocensura emocional gera sintomas como:
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Transtornos de ansiedade (medo constante de inadequação).
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Depressão (apagamento do desejo próprio).
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Baixa autoestima (desvalorização do próprio prazer).
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Transtornos alimentares (em função do padrão estético).
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Síndrome da impostora (sentimento de não merecimento).
Logo, quando rimos ou condenamos o hobby de alguém sem compreender seu valor subjetivo, podemos estar perpetuando uma forma de violência simbólica.
E os Homens? Os Dois Pesos e Duas Medidas
A crítica feita no comentário é certeira ao apontar a hipocrisia social: homens podem brincar, fantasiar, consumir, se refugiar — e ainda são chamados de “normais”. Jogar futebol toda semana, mesmo com dor; investir dinheiro em consoles, personagens ou bonecos; ou adquirir bonecas de silicone com inteligência artificial para fins sexuais — tudo isso é validado, muitas vezes sob a ideia de “direito ao lazer” ou à liberdade.
Isso nos leva a uma questão central: por que hobbies femininos são ridicularizados enquanto os masculinos são institucionalizados? A resposta está na valorização da cultura masculina e na desvalorização daquilo que remete ao feminino — como se o universo emocional, relacional e afetivo fosse inferior.
A Psicoterapia Como Espaço de Autonomia e Resgate
O setting terapêutico é um dos poucos espaços onde as pessoas podem, sem medo, nomear desejos que não se encaixam no socialmente aceito. Onde uma mulher pode dizer que ama cuidar de uma boneca sem ser taxada de carente, fraca ou “problemática”. Onde brincar é entendido como símbolo, como expressão do inconsciente, e não como sinal de patologia.
No consultório, acolher esses desejos é reconhecer que a saúde mental passa por permitir-se viver o próprio mundo interno com liberdade — sem medo, sem vergonha, sem censura. Muitas vezes, a cura começa quando a paciente diz: “eu gosto disso, mesmo que os outros não entendam”.
Questionamentos Finais: O Que Realmente Nos Adoece?
Diante de tudo isso, algumas perguntas inquietantes permanecem:
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Por que a sociedade permite que homens adultos se apeguem a jogos e robôs sexuais, mas ridiculariza mulheres que cuidam de bonecas?
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Por que hobbies femininos precisam de “justificativa terapêutica” para serem aceitos?
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Qual o custo emocional de reprimir os próprios desejos para agradar a norma social?
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Será que o que nos adoece não é o hobby em si, mas o julgamento e o silenciamento de tudo aquilo que não cabe na caixinha do que é esperado?
Conclusão
O caso das bonecas reborn é apenas a ponta de um iceberg: um símbolo potente das lutas contemporâneas por liberdade subjetiva, igualdade de gênero e respeito à singularidade emocional. Quando permitimos que o riso se transforme em crítica, e a crítica em exclusão, estamos cooperando com um sistema que nos afasta da saúde integral.
Do ponto de vista psicoterapêutico, é preciso valorizar todas as formas legítimas de expressão afetiva, especialmente aquelas que funcionam como apoio emocional. Brincar, cuidar, projetar amor em um objeto simbólico não é fraqueza: é potência de vida.
E talvez o verdadeiro sintoma da nossa sociedade não esteja nas bonecas que confortam, mas no olhar que condena.
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