Entre o Cuidado e o Estigma: Análise Psicoterapêutica da Subjetividade Feminina a partir da Prática com Bonecas Reborn

 


Este artigo propõe uma reflexão psicoterapêutica e sociocultural acerca da prática de mulheres adultas que interagem com bonecas reborn, e a crítica social que essa prática tem recebido. A análise parte da observação de uma crítica recorrente: a deslegitimação de hobbies femininos frente à aceitação social de atividades masculinas igualmente simbólicas ou lúdicas. Com base em uma abordagem fenomenológica e psicodinâmica, o artigo examina como o julgamento social, influenciado por normas de gênero, afeta a saúde mental de mulheres, restringe a liberdade subjetiva e perpetua desigualdades simbólicas. Aponta-se para a importância de acolher, no processo terapêutico, expressões subjetivas não hegemônicas como forma legítima de regulação emocional e afirmação identitária.

Palavras-chave: subjetividade feminina; saúde mental; práticas simbólicas; psicoterapia; estigma; gênero.


1. Introdução

A construção social dos papéis de gênero influencia profundamente as formas como homens e mulheres vivem, expressam e são autorizados a experienciar suas emoções, desejos e práticas de lazer. Práticas como o cuidado de bonecas reborn por mulheres adultas têm gerado críticas sociais que revelam mais do que mero espanto: evidenciam um sistema simbólico que hierarquiza as formas de subjetivação e restringe a expressão emocional das mulheres. Por outro lado, comportamentos lúdicos semelhantes por parte dos homens — como jogos eletrônicos, coleções de bonecos, consumo de bonecas sexuais — são frequentemente validados ou mesmo enaltecidos.

A partir de uma análise psicoterapêutica, o presente artigo problematiza os impactos dessa assimetria simbólica sobre a saúde mental das mulheres e sobre a liberdade da subjetividade feminina, situando a prática com bonecas reborn como uma expressão legítima de cuidado de si, reconfiguração do afeto e ressignificação do vazio.


2. Fundamentação Teórica

2.1 Gênero, Subjetividade e Estigmas

De acordo com Butler (1990), os papéis de gênero são construídos por meio de performances sociais reiteradas, muitas vezes introjetadas acriticamente. Nesse sentido, a crítica ao comportamento “infantilizado” de mulheres adultas que cuidam de bonecas reborn revela um dispositivo normativo que regula o que é considerado aceitável na constituição da subjetividade feminina.

Bourdieu (2002) destaca que a dominação simbólica age sobretudo pela naturalização das hierarquias culturais. Dessa forma, práticas afetivas femininas são frequentemente desqualificadas ou patologizadas, ao passo que práticas masculinas com conteúdos simbólicos semelhantes são institucionalizadas como lazer, cultura ou técnica.

2.2 Psicodinâmica do Cuidado e da Regressão

Do ponto de vista psicodinâmico, o vínculo simbólico com objetos pode ser compreendido como uma forma de organização psíquica frente a experiências de luto, carência afetiva ou necessidade de elaboração emocional (Winnicott, 1971). Os chamados objetos transicionais — como bonecas, bichos de pelúcia ou outros objetos de afeto — possibilitam o desenvolvimento do self e a construção de um espaço potencial entre realidade interna e externa.

Assim, longe de configurar um “distúrbio” ou infantilização, a prática com bonecas reborn pode representar um espaço de elaboração simbólica, uma forma de suporte emocional e um recurso de autocuidado.


3. Bonecas Reborn e Expressões Subjetivas: Entre o Brinquedo e o Afeto

As bonecas reborn, hiper-realistas em forma de bebês, são utilizadas em contextos diversos: por colecionadoras, por mulheres que passaram por perdas gestacionais, por pessoas idosas em terapias com Alzheimer, por artistas que as produzem, entre outras. Em muitos desses casos, a prática envolve rituais de cuidado e afeto, que podem contribuir significativamente para a autorregulação emocional, diminuição da ansiedade e sensação de companhia (SANTOS, 2018).

No entanto, a crítica social que recai sobre essas práticas revela a presença do machismo estrutural: o mesmo cuidado que é esperado da mulher em relação aos outros (maternidade, cuidados domésticos, cuidados com parceiros) é negado quando voltado para si mesma. O autocuidado, quando não atende à lógica produtiva ou estética, é visto como fútil ou anormal.


4. O Olhar do Outro e a Patologização do Desejo

Na clínica psicológica, é comum encontrar mulheres que censuram seus próprios desejos por medo de serem vistas como inadequadas. Essa vergonha introjetada, que se origina no olhar julgador da sociedade, impacta diretamente a saúde mental, podendo manifestar-se em sintomas como ansiedade, depressão, baixa autoestima e conflitos de identidade (NEVES, 2016).

Segundo Foucault (1979), a medicalização dos corpos e condutas se intensifica quando o comportamento foge da norma. Assim, o hobby com bonecas reborn, quando não é explicado por uma “justificativa terapêutica”, tende a ser lido como patológico — o que denuncia não um problema psíquico, mas a estreiteza das categorias normativas de leitura do comportamento humano.


5. Implicações Psicoterapêuticas: O Acolhimento da Singularidade

Do ponto de vista psicoterapêutico, práticas simbólicas como o cuidado com bonecas reborn devem ser acolhidas sem julgamento, como manifestações legítimas da subjetividade e estratégias de enfrentamento emocional. O setting terapêutico oferece um espaço seguro para a validação do desejo, a construção de sentido e o resgate da autonomia sobre o próprio mundo interno.

A escuta clínica precisa estar atenta não apenas aos sintomas, mas aos significados atribuídos pela pessoa às suas escolhas. Ao permitir-se brincar, cuidar ou expressar-se livremente, a paciente pode reconectar-se com aspectos fundamentais de sua história, ressignificar perdas e reconfigurar vínculos afetivos.


6. Considerações Finais

A crítica social às mulheres que cuidam de bonecas reborn revela não uma preocupação com a saúde mental, mas a permanência de um modelo social que regula e cerceia a liberdade emocional das mulheres. Enquanto práticas masculinas de fuga ou compensação são normalizadas, práticas femininas semelhantes são ridicularizadas ou diagnosticadas.

A psicoterapia, nesse contexto, assume o papel ético de acolher as singularidades e de desvelar os efeitos do olhar social sobre o sofrimento psíquico. Práticas simbólicas e subjetivas, quando respeitadas e compreendidas, podem se tornar ferramentas poderosas de cuidado, expressão e reconstrução do self.

Este artigo convida, por fim, à reflexão: quem determina o que é saudável ou patológico no desejo humano? O que nos adoece mais: o conteúdo do desejo ou o julgamento que recai sobre ele?




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