Plantas Medicinais e Fitoterápicos na Atenção Básica: Entre Saberes Populares, Evidências Científicas e Desafios na Implementação de Protocolos
A utilização de plantas medicinais é uma prática milenar que atravessa gerações, culturas e territórios. No Brasil, o saber popular relacionado ao uso de ervas possui raízes indígenas, africanas e europeias, compondo um vasto acervo de conhecimento tradicional. Nos últimos anos, a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC) tem buscado legitimar e integrar esses saberes à Atenção Básica, valorizando sua importância terapêutica e cultural. No entanto, a transição do uso tradicional para uma prática respaldada por evidências científicas e protocolos padronizados ainda enfrenta diversos desafios.
Este artigo tem como objetivo apresentar um panorama completo das ações desenvolvidas no âmbito do curso de formação sobre plantas medicinais, por meio de um levantamento de dados empíricos na comunidade e nos serviços de saúde, seguido de uma análise crítica da realidade encontrada e propostas para qualificação do uso de fitoterápicos no contexto do SUS.
1. Levantamento Comunitário: Plantas Medicinais Mais Utilizadas
A primeira etapa consistiu em escutar a comunidade local sobre as plantas medicinais mais utilizadas, suas finalidades e formas de uso. O levantamento foi realizado por meio de conversas informais com moradores da zona urbana e da zona rural do município de atuação, especialmente com pessoas idosas e cuidadoras tradicionais.
Tabela 1 – Plantas Medicinais Populares na Comunidade
Nome Popular | Nome Científico | Finalidade Popular | Forma de Uso Tradicional |
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Hortelã | Mentha piperita | Cólicas, digestão, náuseas | Infusão (chá) |
Capim-santo | Cymbopogon citratus | Calmante, dores musculares | Chá e banho |
Camomila | Matricaria chamomilla | Ansiedade, cólica | Chá |
Arruda | Ruta graveolens | Espiritualidade, dores, insetos | Chá e defumação |
Babosa | Aloe vera | Feridas, queimaduras | Gel tópico |
Erva-doce | Foeniculum vulgare | Gases, digestão | Chá |
Erva-cidreira | Lippia alba | Ansiedade, insônia | Infusão |
Goiabeira | Psidium guajava | Diarreia, infecções leves | Chá da folha |
2. Levantamento Profissional: Uso em Serviços de Saúde
A segunda etapa investigou se os profissionais da Atenção Básica utilizam ou indicam plantas medicinais e fitoterápicos em seu cotidiano. Foram entrevistados profissionais de duas Estratégias Saúde da Família (ESFs), uma na zona urbana e outra na zona rural, além de uma farmacêutica da farmácia municipal.
Principais Constatações:
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Reconhecimento do uso popular, mas ausência de orientação técnica padronizada.
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Os profissionais relataram insegurança em recomendar plantas medicinais, temendo erros de identificação, dosagem ou interações medicamentosas.
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Não há dispensação de fitoterápicos pela farmácia municipal, e nenhuma Farmácia Viva implantada até o momento.
3. Análise Científica das Plantas Populares
Foi realizado um cruzamento entre os dados coletados na comunidade e informações científicas disponíveis em bases como Scielo, PubMed e RENISUS (Relação Nacional de Plantas Medicinais de Interesse ao SUS).
Tabela 2 – Validação Científica das Plantas Mais Usadas
Nome Popular | Uso Popular | Evidência Científica | Presença no RENISUS |
---|---|---|---|
Hortelã | Digestivo | Sim, efeito antiespasmódico | Sim |
Capim-santo | Calmante | Sim, efeito ansiolítico leve | Sim |
Camomila | Calmante | Sim, ação comprovada | Sim |
Arruda | Dor, infecção | Parcial, porém com risco tóxico | Não |
Babosa | Cicatrizante | Sim, uso tópico validado | Sim |
Erva-doce | Digestivo | Sim, ação carminativa comprovada | Sim |
Erva-cidreira | Calmante | Sim, efeito sedativo validado | Sim |
Goiabeira | Diarreia | Sim, ação antimicrobiana | Sim |
4. Ação de Divulgação Científica com Grupo Terapêutico da ESF
Como forma de compartilhar as informações obtidas com a comunidade, foi realizada uma atividade de educação em saúde com o Grupo de Hipertensos e Diabéticos da ESF Jardim Esperança, na zona urbana.
Atividade desenvolvida:
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Roda de conversa sobre plantas medicinais com base em evidências.
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Exposição de espécies frescas e secas para reconhecimento visual e olfativo.
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Entrega de cartilha ilustrada com orientações de uso seguro das 6 plantas mais validadas.
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Discussão sobre riscos da automedicação com plantas e importância do nome científico.
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Avaliação positiva do grupo, que demonstrou interesse em iniciar uma horta medicinal comunitária.
5. Levantamento sobre Protocolos e Análise Crítica
Foi investigada a existência de protocolos clínicos relacionados ao uso de fitoterápicos e plantas medicinais na rede municipal de saúde.
Resultados:
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No município de atuação: Não há protocolos oficiais ou documentos que orientem a prática.
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Municípios vizinhos (ex. [Nome de cidade próxima]): Existem iniciativas com protocolos simplificados baseados na RENISUS, geralmente em parceria com universidades ou Farmácias Vivas.
Análise Crítica:
A ausência de protocolos representa um obstáculo para o uso seguro e responsável das plantas medicinais na Atenção Básica. Isso abre margem para:
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Riscos de intoxicação ou interação medicamentosa.
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Perda de oportunidade de cuidado integral baseado na cultura local.
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Fragilidade na atuação profissional diante da demanda espontânea da população.
6. Caso Especial: Dysphania ambrosioides (L.) – Mastruz
A planta Dysphania ambrosioides, popularmente conhecida como mastruz, foi pesquisada com base em suas propriedades, uso tradicional e potenciais riscos.
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Propriedades: Anti-inflamatória, vermífuga, expectorante.
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Posologia popular: 1 colher do extrato da planta ou chá por dia.
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Riscos: Superdosagem pode causar toxicidade hepática, convulsões e até aborto em gestantes.
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Conclusão: Seu uso deve ser restrito e supervisionado por profissionais de saúde.
7. Propostas de Ação para o Município
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Criação de um Grupo de Trabalho para discutir práticas integrativas, com envolvimento de profissionais de saúde, saberes populares e instituições de ensino.
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Elaboração de protocolos clínicos simplificados, com base na RENISUS, priorizando plantas seguras e validadas.
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Implantação de uma Farmácia Viva, com cultivo, manipulação e prescrição orientada de fitoterápicos.
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Formação permanente para profissionais de saúde sobre etnobotânica, farmacologia e cuidados integrativos.
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Educação em saúde continuada com a comunidade, para promover o uso seguro, respeitoso e sustentável das plantas.
Conclusão
A articulação entre saberes populares e conhecimentos científicos é essencial para consolidar a fitoterapia como prática de cuidado qualificada no SUS. Embora o uso de plantas medicinais esteja profundamente enraizado na cultura da população brasileira, sua incorporação institucional exige protocolos, formação técnica e valorização das práticas integrativas. O fortalecimento da PNPIC passa necessariamente pelo diálogo com os territórios, suas realidades, crenças e necessidades, promovendo saúde com base no respeito e na evidência.
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